A ADPF das Favelas e a Perpetuação da Omissão Estatal – Entre a Balística e a Reparação Histórica
- Fenafro Fenafro

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A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, amplamente noticiada
como uma "vitória da segurança pública", não pode ser lida de forma ingênua.
Ela é, antes de tudo, um sintoma profundo de uma chaga histórica não tratada:
a omissão estrutural do Estado brasileiro perante sua população negra, parda e
periférica. As vidas nas favelas continuam sendo moeda de troca em um jogo
de poder que ignora a raiz do problema.
O Ciclo Ininterrupto da "Guerra aos Pobres"
A decisão do STF, ao derrubar restrições e "reconhecer as facções como
violadoras de direitos humanos", sinaliza um retorno a um modelo já conhecido
e fracassado: a política de "guerra". Desde os primeiros despejos e remoções
forçadas no início do século XX (1902-1906), que criaram os cordões de
isolamento da pobreza negra nas encostas do Rio, o Estado sempre se fez
presente de duas formas: pela ausência de direitos e pela violência
repressiva.
A favela nunca foi um acidente urbanístico; foi uma política de higienização
social e racial. A suposta "urbanização" das favelas, frequentemente celebrada,
é um paliativo que mantém a população em territórios estigmatizados. A
verdadeira Reparação Histórica exige a construção de conjuntos habitacionais
com infraestrutura digna em áreas centrais, utilizando terrenos da União e
Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) que hoje são desviados
politicamente para o setor imobiliário em Parcerias Público-Privadas (PPPs)
excluindo a população pobre em si seja ela branca, amarela, preta ou parda.
A omissão em relação às crianças de 0 a 6 anos e aos adolescentes em "zonas
de guerra" é a reprodução de um genocídio de futuro. Um extermínio
programado e continuo, ou seja, um crime contra a humanidade. O Estado, ao
não garantir creches, escolas, saúde e lazer seguros, está deliberadamente
abandonando uma geração inteira, majoritariamente negra, às regras do tráfico
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e das milícias. Esta não é uma omissão por incompetência; é uma opção
política.
A Judicialização da Gestão da Violência
A ADPF 635 nunca deveria ter existido. Sua própria existência é a prova do
fracasso dos poderes Executivo e Legislativo em construir uma política de
segurança pública integrada e baseada em direitos. O STF, ao ser acionado,
foi forçado a atuar como um "gestor de crises" de alto nível, um papel para o
qual não está institucionalmente desenhado.
A decisão atual é um recuo tático e político do STF. Percebeu-se que as
restrições anteriores, embora bem-intencionadas em sua origem protetiva,
criaram um vácuo de poder que foi imediatamente preenchido pela violência
das facções, como atestam as centenas de barricadas erguidas. No entanto, a
solução encontrada foi simplesmente retornar ao status quo ante beligerante.
A inclusão da Polícia Federal para crimes de repercussão interestadual é uma
migalha que não resolve a violência cotidiana. É uma medida midiática, que tira
o foco da necessidade premente de uma reforma das polícias Militar e Civil,
cujo modelo de "guerra ao inimigo" é incompatível com a proteção de uma
população civil que reside no mesmo território do "inimigo". A operação que
resultou em 64 mortos, a maioria negros e pardos, não é um desvio de rota; é o
produto lógico deste modelo.
Concordamos que o Estado deve combater o crime organizado. No entanto, ao
derrubar garantias processuais fundamentais (como a notificação prévia ao
MP) e flexibilizar o uso da força, o STF entregou à população fluminense um
cheque em branco para mais violência, sob a justificativa de combatê-la.
A decisão é omissa ao não vincular de forma clara e exigível a ação policial a
um projeto macro seqüencial de reparação territorial e urbana. Permitir
que a polícia 'decida sobre o uso necessário da força' em um contexto social
tão explosivo e desigual é ignorar a seletividade racial e social que
historicamente orienta tal uso. Onde está a contrapartida de investimento
massivo em educação, saúde e geração de renda? O Plano de Reocupação
Territorial, para a REPARAÇÃO HISTÓRICA da população de negros e pardos
que vivem em estado de apartheid pela omissão do Estado já assumido pelo
STF. Qualquer decisão neste momento de caos social sem um componente
forte de direitos humanos e inclusão social, se tornar um eufemismo para a
pura e simples militarização permanente.
O STF falhou em ser a guardiã última da Constituição para os mais
vulneráveis. Aceitou a narrativa da 'guerra' em vez de forçar a construção da
paz, através da justiça social.
A Arte de (Re)Direcionar a Narrativa
As reportagens da MEGAOPERAÇÃO DESASTROSA DE CLÁUDIO
CASTRO da direita são um caso primoroso de enquadramento e influência
psicológica. Estamos abordando este ponto para o nosso povo começar a
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acordar destas mensagens subliminar política interminável como projeto de
poder político. Observem os elementos:
Enquadramento da Vitória: Os títulos e comentários de políticos da direita
estabelecem imediatamente que a decisão é uma "vitória da segurança
pública" O governador Claúdio Castro chegou ao absurdo de dizer que não foi
um ato político por que já esta eleito. Isso ativa um impulso inconsciente de
alívio e aprovação em um público aterrorizado pela violência, anulando a
capacidade crítica.
Criação de um Inimigo Claro: A linguagem é belicosa: "combate a facções",
"fortaleceram o crime organizado", "mão pesada". Isso simplifica um problema
complexo (a falência do Estado Social) em uma luta binária entre o Bem (o
Estado) e o Mal (as facções). Quem questiona o "Bem" é automaticamente
alinhado ao "Mal".
Símbolos de Poder e Controle: A menção ao uso de helicópteros e à
derrubada de "restrições severas" ressoa com um arquétipo de ordem e
autoridade. É uma mensagem subliminar de que o "controle" está sendo
retomado, apelando para um desejo profundo de segurança, ainda que a
realidade seja mais caótica.
Ocultação do Sujeito Principal: A peça central da narrativa são as "forças de
segurança" e o "governador". A população favelada, negra e parda, o
verdadeiro sujeito do drama, é transformada em objeto passivo, uma
paisagem sobre a qual a "segurança" é exercida. Suas mortes (os 64
suspeitos) são estatísticas que validam a eficácia da ação, não tragédias
humanas.
Apagamento da História: A Reparação Histórica, o racismo estrutural e a
omissão do Estado com as crianças de O a 6 anos e os adolescentes que
deveriam ser protegidos pelo Estado como consta na constituição são
completamente apagados. É uma técnica de desviar a atenção dos problemas
criados pelos próprios políticos para focar no "agora" da balística, ignorando o
"porquê" histórico-social. Não se fala na EC95/2016 aprovada no final de 2016,
essa emenda ficou conhecida como a Lei do Teto de Gastos. Ela não foi uma
lei comum; foi uma mudança na Constituição, a lei maior do país, para valer
por 20 anos. A emenda foi aprovada no auge da crise econômica e política. O
país mais precisava de investimento público para gerar empregos e reativar a
economia, e eles amarraram as mãos do Estado. Era como desligar os
motores de um avião que já estava em queda. A EC 95 tinha validade de 20
anos, mas foi REVOGADA em 2023, mas os parlamentares logo aprovaram
a EC126/2023 esta emenda criou e ampliou brutalmente as
chamadas "emendas de relator-geral" ou "orçamento secreto". O nome
"secreto" vem do fato de que, até pouco tempo atrás, era impossível para o
cidadão comum saber qual parlamentar indicou cada centavo desse dinheiro.
A Urbanização Não Basta, a Reparação é Imperativa
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A decisão do STF sobre a ADPF 635 não é um marco de progresso; é a
capitulação à lógica da força em detrimento da justiça. Ela melhora a
"segurança" de quem não vive na favela, ao custo de intensificar a guerra para
quem lá reside.
O Estado, em todas as suas esferas, continua omisso. Omisso ao não
promover a verdadeira reparação histórica, que passa pela devolução do
centro urbano à população que foi dele expulsa. Omisso ao não proteger suas
crianças. Omisso ao permitir que um prefeito descumpra leis de reparação da
memória africana, como a Lei Municipal 6613/2019 – RJ, perpetuando o
apagamento cultural.
Enquanto a solução for apenas mais polícia e mais bala, sem um projeto de
cidade que inclua todos os seus cidadãos em condições de igualdade, o Rio de
Janeiro continuará sendo um palco de violência, onde a vida da população
negra e pobre segue sendo o preço a ser pago por uma paz fictícia. A ADPF
635, em sua nova roupagem, é mais um capítulo triste dessa









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